
A 5ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e da Probidade Administrativa de São Luís ingressou, na última quarta-feira, 9, com uma Ação Civil Pública (ACP) contra 10 pessoas e duas empresas por conta de suposto desvio de recursos públicos resultantes de emendas parlamentares. O valor de R$ 560 mil foi disponibilizado pela Secretaria Municipal de Segurança Alimentar (Semsa), em 2021, e deveria ter sido utilizado na distribuição de cestas básicas para famílias em situação de vulnerabilidade social no período da pandemia de Covid-19.
Foram acionados Arnaliz Pires Fonseca (presidente da Associação Assistencial Rio dos Cachorros); Diego Barbosa Lima (ex-assessor parlamentar da Câmara Municipal de São Luís); Hilqueias Gomes da Silva (coordenador do Departamento de Orçamento e Contabilidade da Câmara Municipal); os empresários Marcio Jorge Berredo Barbosa, Leandro Balby de Oliveira Rocha, Sandro Rommel Viana Pereira e Leandro Abreu Mendes; os servidores públicos Gleydson de Sousa Alves (vinculado à Secretaria Municipal de Cultura, atualmente cedido para a Secretaria Municipal de Turismo); Jorge Luís Barros Lopes (vinculado à Fundação Municipal de Cultura) e Matheus Henrique Serra Lima (Câmara Municipal de São Luís); e as empresas D.B. Lima Comércio e Serviços e Distribuidora W.G. Mandacaru Eireli.
Os valores investigados pelo Ministério Público do Maranhão são resultado de emendas dos então vereadores Álvaro Pires e Fátima Araújo e foram repassados à Associação Assistencial Rio dos Cachorros, também conhecida como Escola Comunitária Santo Antônio, por meio de três termos de colaboração (11, 12 e 36/2021). Os recursos deveriam beneficiar moradores do Rio dos Cachorros, Tibiri, Itapera, Maracanã, João de Deus, Vila Conceição, Vila Lobão, Pirapora, Santo Antônio, Residencial João Alberto e São Bernardo.
INVESTIGAÇÕES PRELIMINARES
De acordo com a Ação Civil Pública, no início de 2021 o Município de São Luís, por meio da Semsa, alocou R$ 4.140.527,00 oriundos de emendas parlamentares para diversas entidades do terceiro setor para a distribuição de cestas básicas. Após matérias jornalísticas que denunciavam possíveis irregularidades na destinação das emendas a nove entidades, a 2ª Promotoria de Justiça Especializada de Fundações e Entidades de Interesse Social instaurou notícia de fato para apurar a questão.
Após o recebimento de informações da Secretaria Municipal de Segurança Alimentar, a Promotoria decidiu desmembrar o processo em 13 notícias de fato, cada uma direcionada a uma entidade específica. O caso da Associação Assistencial Rio dos Cachorros, tratado nesta ACP, ficou a cargo da 5ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e da Probidade Administrativa.
IRREGULARIDADES
Após receber informações da Semsa, a 5ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e da Probidade Administrativa identificou inconsistências nas prestações de contas, como a utilização de empresas inaptas ou baixadas junto à Receita Federal para cotação de preços.
As irregularidades não foram consideradas impeditivos para a aprovação de contas pela Secretaria, mas a repetição de cotações em vários termos de colaboração, com indícios de manipulação documental, levou a Promotoria a continuar com as investigações.
No curso das investigações, foram ouvidos a presidente e membros do Conselho Fiscal da Associação Assistencial Rio dos Cachorros, os vereadores que destinaram as emendas e representantes das empresas que teriam participado da cotação de preços e supostamente fornecido as cestas básicas.
Também foram feitas diligências nos endereços das empresas, solicitadas informações à Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz), requerida a quebra do sigilo bancário e fiscal dos investigados e solicitada a análise dos dados obtidos pelo Laboratório de Tecnologia contra Lavagem de Dinheiro do MPMA, com o objetivo de rastrear as movimentações financeiras e a real destinação dos valores repassados à entidade.
“Os elementos de prova colhidos revelam a existência de um esquema estruturado de desvio de recursos públicos e fraude na execução dos projetos sociais voltados à distribuição de cestas básicas, por meio da utilização de empresas sem capacidade real para fornecimento dos bens contratados e da simulação de entrega das cestas à população, que resultou em prejuízos ao erário, enriquecimento ilícito e violação dos princípios da administração pública”, explicou o promotor de justiça José Augusto Cutrim Gomes.
De acordo com as investigações, a Associação Assistencial Rio dos Cachorros foi utilizada como instrumento para a liberação dos valores, sem que houvesse a real distribuição de cestas básicas. Foi identificado o uso de empresas sem o conhecimento dos proprietários e com a falsificação de assinaturas nas supostas cotações de preços.
EXECUÇÃO
Já na execução dos termos de colaboração, também foram apontadas sérias irregularidades. Relatório da Sefaz mostrou que os produtos supostamente vendidos pela D.B. Lima Comércio não foram efetivamente adquiridos pela empresa. Um exemplo foi o item “cuscuz flocão”, que teve 2.370 unidades registradas como entrada e 64.099 como saída, ou seja, vendidas. Também não houve o recolhimento de ICMS sobre as operações.
Incongruências fiscais também foram encontradas em relação à Distribuidora W.G. Mandacaru Eireli. Uma das notas fiscais emitidas para a Associação Assistencial Rio dos Cachorros tinha valor superior a R$ 194 mil. No entanto, não houve registro de entrada dos produtos supostamente entregues.
As diligências realizadas pelo Ministério Público também demonstraram que os endereços das empresas são incompatíveis com as atividades que deveriam desempenhar. A D.B. Lima Comércio, por exemplo, funcionaria em um local onde há uma residência habitada há mais de 20 anos e sem qualquer vestígio de atividade comercial.
A análise da movimentação financeira dos envolvidos também reforça a tese de desvio de recursos públicos. Inicialmente, a quase totalidade dos recursos recebidos pela Associação foram repassados às empresas. “A movimentação posterior dos recursos revelou práticas típicas de dissimulação e ocultação de valores, como o fracionamento de transferências, a utilização de múltiplas contas, cheques avulsos e saques em espécie, com o claro intuito de evitar alertas do sistema bancário e ocultar o destino final dos recursos”, explicou o promotor Augusto Cutrim.
Além dos repasses de recursos a vários dos acionados por improbidade administrativa, as investigações observaram que a presidente da entidade, Arnaliz Fonseca, também movimentou mais de R$ 148 mil da conta da Associação para a sua conta pessoal entre 1° de janeiro de 2021 e 31 de dezembro de 2022.
CONDUTAS
Na Ação, a 5ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e da Probidade Administrativa aponta que os demandados atuaram de forma coordenada e dolosa para desviar recursos públicos, mas individualiza a atuação de cada um deles. Arnaliz Pires Fonseca, como presidente da Associação Assistencial Rio dos Cachorros, foi essencial para legitimar as operações ilícitas e conferir aparente regularidade ao processo. Ela usou a estrutura da instituição para captar os recursos públicos, apresentando documentos forjados e prestações de contas fraudulentas para encobrir a não execução dos serviços.
Ainda de acordo com a ACP, Arnaliz Fonseca “demonstrou resistência em fornecer informações relevantes, omitindo os nomes dos fornecedores contratados, os responsáveis pela distribuição das cestas básicas e os beneficiários finais”. Ela também recebeu, pelo menos por duas vezes, valores diretamente de Diego Barbosa Lima.
Além de ser o responsável pela empresa D.B. Lima Comércio, na época dos fatos, Diego Barbosa Lima exercia a função de assessor parlamentar tendo acesso privilegiado e contínuo a informações estratégicas sobre os trâmites administrativos e financeiros da Câmara Municipal. Ele também teria capacidade de interferência nos processos de formalização e execução dos termos de colaboração.
Ao receber R$ 349.250,00 da entidade contratante, a empresa repassou R$ 118 mil diretamente para a conta pessoal de Diego Lima, além de realizar vários saques, emitir cheques avulsos e transferências fracionadas a terceiros. Os principais beneficiários foram os servidores públicos Jorge Luiz Lopes, Matheus Henrique Lima, Gleydson Alves e Hilqueias da Silva. Sobre o último, Diego Lima afirmou, ainda, que era o responsável pela prestação de contas da Associação junto ao Município.
Coordenador de Finanças e Contabilidade da Câmara Municipal, Hilqueias Gomes da Silva tem estreita ligação com os trâmites burocráticos e a execução dos projetos custeados com recursos provenientes de emendas parlamentares. Ouvido pelo MPMA, confirmou que participou da elaboração de projetos de entidades que recebiam emendas parlamentares e que ajudou na prestação de contas da Associação Assistencial Rio dos Cachorros.
De acordo com as investigações, entre 2021 e 2022 Hilqueias da Silva recebeu mais de R$ 115 mil de Diego Barbosa Lima e da empresa D.B. Lima Comércio. Na mesma época, ele teria feito repasses a Márcio Berredo Barbosa.
“A proximidade temporal e a coincidência de beneficiário indicam uma atuação coordenada entre os integrantes do núcleo operacional do esquema, com divisão de tarefas e de funções, corroborando a possível existência de uma organização criminosa voltada para o desvio de recursos públicos”, observou Augusto Cutrim.
Ex-servidor da Fundação Municipal de Cultura, Márcio Jorge Berredo Barbosa teria participação direta no núcleo financeiro e logístico da fraude, “funcionando como ponte entre os agentes públicos e os destinatários finais dos recursos desviados”. Seu papel teria sido determinante para a ocultação da destinação dos recursos, contribuindo para fragmentar os repasses e dificultar a rastreabilidade dos valores movimentados.
Leandro Balby Oliveira Rocha seria o principal destinatário da Distribuidora W.G. Mandacaru Eireli. Ouvido, ele negou qualquer vínculo e até conhecer a empresa e afirmou ter fornecido cestas básicas à Associação Assistencial Rio dos Cachorros, por meio de outra empresa. “No entanto, não apresentou qualquer documento comprobatório da relação contratual ou da efetiva execução do serviço, o que fragiliza ainda mais a versão apresentada”.
Para a 5ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e da Probidade Administrativa, há indícios suficientes de que Leandro Balby seria o verdadeiro beneficiário dos valores repassados à W.G. Mandacaru, “valendo-se de interposta pessoa (Leandro Abreu Mendes) para ocultar sua participação na empresa e viabilizar a apropriação indevida de recursos destinados à execução de política pública emergencial”.
Identificado como proprietário da W.G. Mandacaru Eireli, Leandro Abreu Mendes declarou que não exercia a gestão da empresa e que teria cedido seu nome a pedido de um terceiro não identificado. Como titular da empresa, ele teria contribuído de forma dolosa e consciente para que a organização fosse utilizada como instrumento para o desvio de recursos públicos sem possuir estrutura operacional, quadro funcional ou capacidade técnica para execução do contrato.
Além disso, a intenção de contribuir para o desvio de recursos públicos é demonstrada na negativa de apresentar os extratos bancários e ao declarar não se recordar do nome da pessoa que o procurou para constituir a empresa.
Gleydson de Sousa Alves também teve papel ativo na execução financeira e operacional do esquema. Ele seria “elo essencial na cadeia de fracionamento de repasses, facilitando o uso de interpostas pessoas (‘laranjas’) para dissimular a origem e o destino dos recursos desviados”. Além disso, entre 20 e 22 de abril de 2021 ele teria recebido R$ 63 mil das contas de Diego Barbosa Lima e da empresa D.B. Lima Comércio sem qualquer comprovação de prestação de serviços.
Jorge Luís Barros Lopes teria atuado como “laranja” para a movimentação dos valores ilícitos, cedendo sua conta bancária por orientação de Gleydson Alves e repassando valores sacados a Márcio Berredo. Para o promotor de justiça autor da ação, a condição de servidor público agrava a ilicitude da conduta, pois “embora não tenha exercido papel decisório ou técnico no processo, violou os deveres de lealdade, legalidade e honestidade, prestando-se a atuar como facilitador de operação ilícita com recursos públicos, com plena consciência do desvio de finalidade e da natureza ilícita dos valores envolvidos”.
Já Matheus Henrique Serra Lima figuraria como um dos destinatários finais dos recursos, tendo recebido R$ 98 mil da empresa D.B. Lima Comércio e de seu proprietário, sem que haja qualquer justificativa documental ou administrativa que legitime os repasses.
Chama a atenção, ainda, a semelhança entre os valores recebidos por Matheus Lima, Jorge Luís Lopes e Gleydson Alves, o que demonstraria um padrão de distribuição recursos, reforçando indícios de que a vantagem indevida teve por objetivo ocultar a destinação real dos valores desviados.
Por fim, Saulo Rommel Viana Pereira recebeu valores fracionados que totalizaram R$ 179,5 mil. De acordo com Diego Barbosa, os valores seriam relativos ao fornecimento de cestas básicas fornecidas como pessoa física, sem emissão de nota fiscal ou vínculo contratual. O acionado teria apresentado dois recibos, em nome de Arnaliz Fonseca e da vereadora Fátima Araújo, mas sem nota fiscal, comprovante de aquisição dos produtos, contrato, ordem de serviço ou qualquer formalização compatível com a execução de parcerias com a administração pública.
PEDIDOS
Na Ação, o Ministério Público do Maranhão requer a concessão de liminar determinando a indisponibilidade dos bens, rendas e valores de todos os demandados e o afastamento de Hilqueias Gomes da Silva do cargo de coordenador do Serviço de Finanças e Contabilidade da Câmara Municipal de São Luís e de Arnaliz Pires Fonseca da presidência da Associação Assistencial Rio dos Cachorros.
Também foi requerida a proibição de acesso de todos os demandados às dependências da Câmara Municipal e a proibição das empresas D.B. Lima Comércio e Serviço e Distribuidora W.G. Mandacaru Eireli de contratar com o poder público ou receber benefícios e incentivos fiscais ou creditícios enquanto perdurar a Ação.
Ao final do processo, foi pedida a condenação de todos os envolvidos por improbidade administrativa, estando sujeitos a penalidades como ressarcimento integral do dano causado ao erário, atualizado monetariamente e acrescido de juros; perda de bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio; suspensão dos direitos políticos; proibição de contratar ou receber incentivos do poder público; pagamento de multa; e perda da função pública.
Com base na Lei Anticorrupção (12.846/2013), foi pedida a condenação das empresas citadas à perda dos bens, direitos ou valores obtidos ilicitamente; suspensão ou interdição parcial das atividades e dissolução compulsória das empresas; proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas, bem como de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público; e ressarcimento solidário dos prejuízos.
O promotor de justiça Augusto Cutrim alerta, ainda, que as condutas apuradas apresentam indícios que podem configurar crimes contra a administração pública como organização criminosa, lavagem de dinheiro e ocultação de bens, sendo necessária a instauração de procedimento próprio para apurar a real extensão dos crimes e garantir a responsabilização criminal dos envolvidos.
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