Carlos Nina
Os italianos comemoram, dia 2 de junho, a Festa da República. Nesse dia, em 1946, através de referendo, em sufrágio universal, os italianos decidiram mudar o regime de seu país, de monarquia para república. Com a participação das mulheres pela primeira vez em eleições na Itália, a opção pela república foi vitoriosa com 54,27% dos votos. Esse percentual evidenciava que os monarquistas eram em número significativo (45,73%) dos mais de trinta e seis milhões de votantes e explicava, em parte, as dificuldades da transição de um regime para o outro, fazendo daquele momento um dos mais emblemáticos da história contemporânea italiana. Foi, contudo, o marco de uma nova era política, social e institucional para a Itália, sacrificada pelo colapso do fascismo e a tragédia devastadora e traumática da Segunda Guerra Mundial.
A monarquia italiana, sob a dinastia da Casa de Savoia, era vista como um pilar da unidade nacional, após a unificação da Itália no século XIX. Contudo, ao nomear Mussolini como primeiro-ministro e manter-se passivo diante da escalada autoritária e violenta do fascismo, o rei Vítor Emanuel III, abalou sua legitimidade e comprometeu a imagem da monarquia diante do povo italiano, pelo apoio que ofereceu ao Duce e ao regime fascista instaurado em 1922.
Dentre as consequências desastrosas dessa colaboração sobressai-se ter sido a Itália arrastada para a Segunda Guerra Mundial ao lado da Alemanha nazista, enfrentando derrotas militares, destruição interna e profunda crise econômica e social. Após a invasão aliada e a queda de Mussolini, em 1943, o rei tentou restaurar sua credibilidade abdicando em favor de seu filho, Umberto II. No entanto, o gesto não foi suficiente para apagar os vínculos da casa real com o fascismo e o povo italiano passou a clamar por uma mudança estrutural. Daí a convocação de um referendo para decidir entre a permanência da monarquia e a adoção da república.
A vitória republicana resultou na imediata saída de Umberto II do trono e sua partida para o exílio. Com o fim da monarquia, a Itália iniciou um processo de refundação institucional. Foi eleita uma Assembleia Constituinte encarregada de redigir a nova Constituição, promulgada em 1948, que estabeleceu uma república parlamentarista, baseada na separação dos poderes, no respeito aos direitos fundamentais e na soberania popular, como proclamou em seus primeiros artigos:
- Art. 1. A Itália é uma república Democrática, baseada no trabalho. A soberania pertence ao povo, que a exerce nas formas e nos limites da Constituição.
- Art. 2 A República reconhece e garante os direitos invioláveis do homem, quer como ser individual, quer nas formações sociais onde se desenvolve a sua personalidade, e requer o cumprimento dos deveres inderrogáveis de solidariedade política, económica e social.
- Art. 3 Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, sem discriminação de sexo, de raça, de língua, de religião, de opiniões políticas, de condições pessoais e sociais. Cabe à República remover os obstáculos de ordem social e económica que, limitando de facto a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política, económica e social do País.
A mudança do regime representou uma ruptura com a herança autoritária e militarista, abrindo espaço para a modernização do Estado e o fortalecimento da cidadania. A República Italiana, nascida desse processo, tornou-se um modelo de reconstrução democrática no pós-guerra, tendo papel central na fundação da União Europeia e na promoção dos direitos humanos no cenário internacional.
A opção pela república em 2 de junho de 1946 não foi apenas uma mudança formal de regime, mas um ato de renascimento nacional. Ao rejeitar a monarquia comprometida com o fascismo, o povo italiano escolheu a democracia, a responsabilidade política e a esperança de um futuro mais justo. A Festa della Repubblica, portanto, mais que comemoração cívica, é uma forma de lembrar e preservar a capacidade de um povo de reescrever sua história, com coragem e sacrifício, em nome da liberdade e da dignidade.
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