quarta-feira, 2 de março de 2022

A LMP a serviço do ódio


Carlos Nina*

A Lei Maria da Penha - LMP, que criou “mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, tem sido irresponsável e impunemente usada a serviço do ódio de falsas vítimas. São pessoas inescrupulosas, movidas a má-fé, sem qualquer respeito pelas mulheres que efetivamente são vítimas de violência e têm seu atendimento, muitas vezes, retardado porque os recursos e, o mais importante, o tempo das pessoas envolvidas no atendimento às denúncias são desperdiçados na satisfação desses egos incontrolados.

É o que acontece ao serem ocupadas a Polícia, o Ministério Público e o Judiciário em atividades de registro, relatórios, pareceres e decisões, inclusive em longas audiências de duas, três ou mais horas, praticamente obstruindo toda a estrutura que deveria ser voltada para casos reais.

A satisfação daquelas pessoas se dá com a obtenção das famosas Medidas Protetivas de Urgência – MPU, que visam proteger as vítimas da violência, mas que têm sido buscadas como instrumento de vingança, por exemplo, pelo fim de um relacionamento, no qual uma das partes decide que não quer mais manter a convivência.

A consequência desses desatinos é o dano moral, profissional e patrimonial àqueles que, injustamente, são alcançados pelas MPU.

Um jurista, certa vez, me disse: isso é exceção. Uma espécie de efeito colateral, expressão que usei para dar nome a um conto com o qual fui distinguido com o 1º lugar no I Concurso Literário Maria Firmina dos Reis, promovido pelo Tribunal de Justiça do Maranhão sobre o tema, em 2021, publicado pela Escola Superior da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM), na “Antologia de textos premiados: poemas, contos e crônicas” (Disponível no site do TJMA https://www.tjma.jus.br/bibliotecas/esmam/obras/303, p. 61).

A avaliação do eminente jurista é uma conclusão matemática. Estatística. Aceita sob essa ótica desde que a exceção não seja a própria pessoa que faz esse tipo de avaliação, seu parente ou amigo. Aí deixa de ser exceção para ser o que de fato é: uma injustiça, para não usar outro termo mais apropriado.

Essa vítima, além do dano moral, está sujeita – e tem acontecido – a perder o emprego ou sequer assumir um cargo público para o qual tenha sido aprovado.

O que torna esses desvios mais graves é quando se trata de pessoas que, pela profissão, deveriam ser as primeiras a zelar pela observância da finalidade da norma, como, por exemplo, no caso dos advogados, cuja instituição que os disciplina tem como finalidade a boa aplicação da lei (art. 44, I, da Lei 8906/94) e seu Código de Ética prevê como dever do advogado atuar com honestidade, veracidade e boa-fé. (Art. 2º, Parágrafo único, II).

O desvio no uso da LMP não agride apenas as vítimas reais da violência, mas é um acinte para com as autoridades que lidam com tão importante missão, denigre as mulheres que lutam pela defesa das vítimas de violência e, mais que tudo, é um desrespeito para com o sofrimento inominável da própria Maria da Penha, que deu nome à lei que nela tem parte de sua inspiração.

É compreensível que a autoridade policial, o Promotor de Justiça e o magistrado, ao receberem uma ocorrência deem relevância à palavra de quem se apresenta como vítima, conseguindo, assim, de imediato, algumas medidas, como o afastamento do lar (art. 22, II, da LMP), vedação de aproximação (inciso III, a) e de comunicação (III, b), pois pode efetivamente haver um risco de uma fatalidade iminente. Principalmente quando o pedido é feito em plantão, períodos de maior incidência de violência, como fins de semana, feriados, carnaval, passagem de ano.

Nem sempre a concessão dessas medidas é suficiente para evitar a fatalidade. É preciso que haja meios eficazes de garantir a imediata proteção das vítimas. Mas é preciso, também, que haja um mínimo de cautela porque não raro a leitura atenta da própria narrativa da suposta vítima pode revelar que se trata apenas de um emaranhado falacioso para tentar induzir a erro a autoridade, assoberbada, num plantão, por exemplo, com uma enxurrada de pedidos.

Havendo indícios de ameaça física ou psicológica, a medida deve ser urgente, ainda que seja falsa a alegação. Outras vezes a própria narrativa sequer contém registro de ameaça iminente, mas ausência de fato recente ou necessidade de medida de urgência, configurando tão somente ousada tentativa de manipulação das autoridades e, portanto, deve ser repelida.

Em texto intitulado ““Só Carolina não viu” – Violência Doméstica e Políticas Criminais no Brasil”, introdutório ao livro organizado por Adriana Ramos de Mello (Comentários à Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. 2ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009) -, Nilo Batista, ex-presidente da OAB-RJ, referindo-se à LMP, já advertia:

“Certamente o setor mais criativo e elogiável da lei reside nas medidas protetivas de urgência. (…) O perigo estará potencialmente, aqui, num abusivo emprego penal das medidas protetivas de urgência, que estão amplamente legitimadas enquanto coerção direta. (…) Estabelecer critérios para a adequada aplicação das medidas protetivas de urgência, dentro da perspectiva cautela que faz delas a boa novidade da lei, cerceando as inúmeras possibilidades de seu dilatado emprego penal, é talvez a mais importante tarefa que a jurisprudência brasileira tem a cumprir na aplicação dessa lei.” (p. XVII).

Nesse processo é fundamental a contribuição dos advogados comprometidos com a verdade e especialmente dos membros do Ministério Público cientes das responsabilidades constitucionais de sua instituição, “essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.” (art. 127 da CF)

Não são raros os casos de supostas vítimas beneficiárias das MPU em que elas próprias são que procuram a aproximação e a comunicação com aquele contra quem pediram e obtiveram as medidas.

Nesses casos, acabam os alcançados pela MPU até requerendo a manutenção das medidas, como forma de proteção às avessas, já que não há lei que os proteja.

Sobre esse ponto, a advogada criminalista e de família Sara Caroline Leles Próton da Rocha, autora do livro “Belas e Feras – a violência doméstica da mulher contra o homem” (2018), em artigo publicado no livro “Violência de gênero: contexto e reflexões” (2021), organizado pelo desembargador Cleones Carvalho Cunha e publicado pela ESMAM (Disponível no site do TJMA: https://www.tjma.jus.br/bibliotecas/esmam/obras/303), argumenta:

“Um dos tabus da sociedade moderna é a violência doméstica contra os homens, que negligenciada causa danos à saúde mental masculina e pode ensejar na prática de suicídio.
Enquanto as mulheres têm uma lei que garante presteza, que veda a aplicação dos institutos despenalizadores (suspensão condicional do processo e a transação penal) ao sujeito ativo do crime de violência doméstica e que pune com severidade - antes mesmo de uma condenação transitada em julgado, vez que a palavra da vítima é a rainha das provas nos crimes de violência doméstica, assim como os crimes contra a dignidade sexual - os homens em igual situação se submetem a delegacia comum, procedimento comum e lento e passam por constrangimentos diversos, piadas, humilhações e deboches das próprias autoridades policiais, que diminuem a dor de um homem quando este relata o que vivencia.”

Penso que quem procura indevidamente usar a LMP o faz em duas situações: ignorância (não têm o mínimo de informação sobre a finalidade da norma e das instituições envolvidas) ou má-fé. Nesta hipótese, não raro, movida a transtorno de personalidade, tema tratado com didática abordagem por Sara Rocha, que, em sua conclusão, afirma:

“A Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, tem um viés heteronormativo, com fundamento sociopolítico feminista, o que consequentemente não inclui os homens enquanto detentores de direitos. Permite o propagar das violências e segregação de gênero, assim como impede o vislumbrar da proporção e realidade da violência doméstica, por não só excluir os homens heteroafetivos, como também casais homoafetivos.

Os transtornos de personalidade podem ser uma das causas da violência doméstica, pois atingem pessoas com baixa capacidade de lidar com frustrações, raiva, medos, inseguranças, levando a um novo e diferente estilo de vida, que não é saudável, mas inadequado a própria saúde mental, a da família e à coletividade.”

Certo é que a LMP é importante e estimulou muitas mulheres vítimas de violência a buscar socorro e o encontraram. Outras, apesar de também terem obtido a proteção legal, não evitaram tragédias. É preciso que sejam aperfeiçoados os recursos das instituições envolvidas na aplicação da LMP para dar eficácia às MPU e efetivamente proteger as mulheres vítimas de violência.

Essa preocupação a magistrada Sônia Maria Amaral Fernandes Ribeiro expressa já na Introdução de seu livro “De Cabral a Maria da Penha” (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2019), p. 8:

“Mas me preocupa muito mais a eficácia da medida protetiva de urgência concedida pelo Judiciário e que, na maioria das vezes, depende da atuação positiva do Executivo. É difícil admitir que o Estado venha se omitindo com frequência em assegurar a efetividade da Lei Maria da Penha. Comumente o juiz defere a medida protetiva e o agressor descumpre a decisão porque não há fiscalização nem acompanhamento da polícia.”

Mas é preciso, também, que seja punido o mau uso da lei e assegurado às vítimas desses desvios um mínimo de reparação, não de sua imagem - enlameada para sempre e sem chance de plena restauração, pela simples decretação da medida -, mas nos registros policiais e judiciários, para que essa nódoa não repercuta em prejuízo, pelo menos, de sua vida profissional.

Como avaliou o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Reynaldo Soares da Fonseca, no prefácio do livro de Sônia Amaral Ribeiro:

“Depois de doze anos da edição da Lei, ainda não se pode celebrar, lamentavelmente, sua efetividade. A luta está, ainda, no início e depende muito do Estado, mas sobretudo do tecido social como um todo.

Trata-se, portanto, de um trabalho profundo e corajoso. A mudança de paradigma, de cultura, não é fácil. O processo de satanização de pessoas e/ou de instituições me faz lembrar de SARTRE: ‘o inferno é o outro’, que, na verdade, quer dizer, ‘o inferno é o ego’, pois o outro é a diversidade, a multividência, seu peculiar modo de conceber e praticar a vida. É necessário, portanto, como diz o Ministro Poeta Carlos Ayres Britto, ex-Presidente da Suprema Corte de Justiça Nacional, ocorrer ‘o eclipse do ego’ para surgir a luz.”

Enfim, como disse o Ministro nesse Prefácio, “A construção coletiva da Lei Maria da Penha encorajou as mulheres e impulsionou a denúncia das inúmeras violências”. Entretanto, esse avanço tem custado o preço de “exceções” e “efeitos colaterais” absolutamente injustos, mercê, talvez, da ignorância, mas, acima de tudo, da má-fé e do ódio de pessoas contrariadas em suas obsessões e ambições. É quando o caso resvala do Direito para Medicina Legal.

* Advogado e jornalista. Ex-Promotor de Justiça e ex-presidente da OAB-MA. Magistrado aposentado.

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